A primeira vez que eu me dei
conta disso foi com 21 anos. Um amigo me contava que a sua
namorada, que tinha cabelos
pretos, cacheados e longos, havia cortado o cabelo quase
raspado. Ele dizia que ela era
uma mulher linda, estonteante, e que continuava assim
careca, mas ele de repente já não
sentia mais tesão por ela. "Cara, sem o cabelo longo
parece que a atração que eu tinha
por ela acabou!". Conversamos sobre isso e chegamos a
conclusão que era uma questão de
adaptação e que logo ele iria se acostumar, só o cabelo
havia mudado.
Pois a relação foi de mal a pior
por causa dessa questão e eles acabaram terminando
tempos depois. Isso ficou
reverberando em mim por muito tempo. O fato é que nós homens
projetamos uma imagem idealizada
do que esperamos de uma mulher, nas mulheres. O
estereótipo da mulher de cabelo
longo, maquiada, de traços delicados, está sempre
colocado e atrelado ao afeto
masculino, então qualquer mulher que fuja desse padrão se
torna menos atraente, e por
consequência, se afasta desse ideal de mulher, o ideal de
feminilidade.
Para além das questões de bela,
recatada e do lar, a feminilidade tem total ligação com a
objetificação. Culturalmente, ao
olhar dos homens as mulheres são objetos, como bonecas
Barbie, que eles escolhem,
brincam e jogam fora quando convém. A escolha é altamente
ligada aos atributos de
aparência. Superficialmente, o problema se apresenta assim, mas
pode escalar em níveis muito
piores. Recentemente, em minhas pesquisas, achei uma
pesquisa que dizia que as
mulheres doentes têm seis vezes mais chances de serem
abandonadas.
E os homens seriam abandonados em
um número muito menor. Essa pesquisa utiliza
câncer e esclerose múltipla como
marcadores. Isso, em parte tem explicação: a mulher é
criada para o cuidado, além de
saber lidar melhor com suas emoções, e muitas vezes
sequer ter opção, porque se ela
não cuidar, ninguém cuida. Contudo, essa pesquisa está
altamente relacionada ao câncer
de mama e o seu tratamento, porque às vezes é
necessário retirar as mamas, e
geralmente, se a mulher não é abandonada no
diagnóstico, é na retirada das
mamas.
Vocês entenderão onde quero
chegar, esses homens que abandonaram suas esposas
doentes, relataram repulsa, falta
de desejo e por querer uma "mulher completa" por
causa da retirada das mamas,
mesmo que houvesse reconstrução. O que é uma mulher
completa? A que concretiza sua
visão limitada de uma mulher? A mulher sequer tem o
direito de ficar doente sem ter
que lidar com dois problemas: o estresse da doença e a
questão estética e lidar com seu
marido, que supostamente a amava, indo embora porque
sente repulsa.
A objetificação não é só a
curtida em foto de mulheres de bikini, é tratar a mulher como um
objeto que, se faltar algo, ao
olhar do homem, ela já não serve mais e pode ser
dispensada, além de acusar mais
uma vez a nossa incapacidade emocional e total falta de
empatia e respeito humano. Um
homem capaz de abandonar a própria esposa durante um
tratamento por causa de uma
retirada de mama sem qualquer pesar, é o que prova que os
homens não precisam de
relacionamento, e sim de tratamento psicológico.
Não sentimos atração por mulheres
na realidade. O ser humano, a pessoa que está do
seu lado, que tem qualidades e
defeitos para além da sua aparência, que é sua parceria,
não porque ela é uma pessoa
perfeita, mas porque ela te ama e decidiu partilhar a vida
contigo, que te faz rir, que te
apoia, é isso que deveria apaixonar. Mas a projeção que
fazemos faz com que as mulheres
tentem se encaixar nesse ideal que mora na nossa
cabeça, e isso custa dinheiro,
saúde mental, e às vezes a vida delas, e sequer nos
questionamos em relação a isso.
E muitos homens tem a total falta
de remorso, abandonam ou traem convictos de que estão
fazendo isso por benefício
pessoal, "minha mulher não é mais a que era, por isso vou
procurar outra", não há
sequer o mínimo de questionamento, de preocupação com a
relação e com o outro. É por isso
e outros motivos que eu digo que masculinidade tóxica é
um problema de saúde pública,
você não consegue mensurar a violência psicológica que é
você condicionar um ser humano a
ser amado apenas se ele atender um estereótipo.
Se questione porque sua atração
por uma mulher é tão frágil que precisa se apegar em
pequenos aspectos, e
principalmente, se você ama as mulheres, como sujeitos, ou ama
suas carnes, seus corpos apenas.
Quando você amar de verdade uma mulher, o ser
humano mesmo, não a projeção na
sua cabeça, aí poderemos discutir envolvimento em
uma relação. Mulher não é coisa,
muito menos deve ser resumida ao seu corpo. Nosso
afeto é totalmente distorcido,
adoecido, e adoece quem está ao nosso redor.
João Luiz Marques
Escritor, palestrante e
pesquisador da psicologia das masculinidades..